O maior “chatólogo” do Brasil

Por Marcelo Dunlop

Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim teria celebrado seus 98 aninhos no dia 25 de janeiro, e nem parece que cantou para subir lá em 1994. Nos palcos, livrarias e canais de filmes, Tom Jobim segue vivo e encantador, nos abanando com seu eterno chapéu panamá.

Nos cinemas, “Elis & Tom, só tinha de ser com você” só foi menos aplaudido do que “Ainda estou aqui”. No teatro, “Tom Jobim musical” tem levantado a plateia desde outubro, em grandioso espetáculo com roteiro de Nelson Motta e Pedro Brício, em cartaz até fevereiro. E a antologia “O ouvidor do Brasil”, campeão de vendas, é mais que um livro, é um passeio pelo Rio antigo de Tom e Vinicius, em 99 crônicas de rir, chorar e cantarolar. Por que 99, e não cem? Pergunte ao Ruy Castro.

É que, no fundo, podiam ser mil. Como reparou o jornalista Geraldo Mayrink, o maestro carioca nascido na Tijuca “é o grande artista brasileiro. É o Borges, o Picasso, o Beethoven daqui. Nossa suprema vingança. Na música popular, a Espanha, a Argentina, a Alemanha não tiveram um Tom Jobim.”

Sorte do Leblon que o teve – por onde agora eu caminhava, numa procissão muda à saída do teatro Casa Grande. A patroa notou meu bico e sacou: “Já sei, o roteiro o desapontou. Escreve o seu, ué”. Ela estava certa. Elas sempre estão certas.

O musical não faria feio em Londres e tem cenas sensacionais – por exemplo, Tom no banheiro de seu bar predileto, a beber seu chope pequeno (que chamava de “pipoca”), escondido da segunda esposa. Mas ah, faltava alguma coisa.

De cara, eu cortaria aquele malandro sapateando em cima do piano – Noel Rosa por certo aprovaria, mas Tom, zeloso do instrumento, eu duvido. E que cena apoteótica renderia a passagem de Jobim na Sapucaí, com a Mangueira em 1992 – um dos pontos altos do livro de Ruy, e da vida de Tom: “Me senti como tivesse ganhado o prêmio Nobel da Paz”, diria o homenageado.

Em casa, me pus a pensar: afinal, que outras cenas entrariam no roteiro que jamais escreverei?

Cena 21: Tom Jobim no camburão. Preso em 1971 pelo Dops, ele tem um estalo: leva com ele sua flauta em sol. E faz, no banco de trás da patamo, seu concerto mais estranho, para amansar os espíritos dos meganhas.

Cena 17: Tom e o UFC de fasianídeos. Após a saideira no bar Lagoa, ali por 1965, Tom aceita o convite do garçom Rodrigues para uma esticadinha. Vão todos, funcionários e clientes, fechar a madrugada num evento esportivo arcaico e inusitado: uma rinha de galos.

Cena 39: Tom e o cabelo molhado. Na volta da academia Coelho nos anos 1980, onde malhava sem música ambiente e fazia bagunça na sauna, ele passa direto pelo Bracarense (adorava pegar uma dobradinha da Alaíde para viagem) e se aboleta na geladinha churrascaria Plataforma. Os garçons, carinhosos, trazem uma toalha e começam a enxugar a cabeleira do maestro.

Cena 45: Tom no táxi. Em Nova York, o motorista, egípcio ou cingalês, o espia: “Não me diga, vou adivinhar sua profissão. Você é professor”. Mais dois quarteirões: “Não. Músico. Sim, um compositor!” Tom chega ao destino e dá a gorjeta. O piloto aponta a barriga de Tom: “Sim, e um compositor que gosta muito de cerveja”.

Eu sei, eu sei, é impossível encaixar tudo – ainda mais em dois atos – após vida tão notável e um legado tão imenso. Mas olha, eu não resistiria a tesourar uma das canções para encaixar uma das mais célebres contribuições de Tom Jobim ao mundo: o seu tratado filosófico dos chatos – e a arte de evitá-los.

Seria, digamos, a cena 51:

Tom na Plataforma, hoje uma triste lojinha Leroy Merlin Express. Na mesa, o ator José Lewgoy e o genial Jaguar. O autor de “Água de beber” elogia a luminosidade da casa e lembra por que evitava bares com ambiente de boate. “É que no escuro os chatos atacam mais facilmente.” A cena está lá, prontinha, no delicioso livro “Confesso que bebi”, de Jaguar:

“Tom, com enormes óculos escuros, sentou-se conosco, pediu aquela vodca russa que só tem vogal no nome e começou a discorrer sobre a teoria geral dos chatos, como expert no assunto que é, por ter sido uma das maiores vítimas deles. ‘Óculos escuros é fundamental’, disse. ‘O chato exige atenção pupilar. Sem saber para onde você está olhando, ele perde o moral, aí você aproveita o momento de fraqueza e escapa’.

Explica por que passou a frequentar a Plataforma: ‘Grandes ambientes confundem o chato, ele se desconcentra. Ai de ti quando o chato consegue te encurralar num canto de bar, sem óculos escuros. Bloqueia a passagem, olho no olho, te toca, te enche de perdigotos. Aí não tem escapatória’. Bebe a vodca, tira os óculos e nos encara, preocupado: ‘Por acaso estou chateando vocês com esse papo?’”

Olha aí, seu Nelson Motta, prontinha, hein? Vai dizer que não dá para encaixar? Bem, sem problemas. Ao menos fica aí, para os encafifados com as tais 99 crônicas, mais uma, para fechar a centena. E passa a régua, com loas e um chope gelado em tributo ao nosso boêmio Beethoven brasileiro.