Verissimo nos ensina que “não há nada de errado com o mundo, ele só é muito mal frequentado.” Curiosamente, com os pé-sujos se dá o oposto. Podem ser péssimos, mas no fim são muito bem frequentados, nem que sejam pelos amigos da gente, aquela cambada.
Na terra do cronista, Porto Alegre, existia o bar do Ari, com seu balcão e seus pratos-feitos no almoço. Se era um boteco ruim ou charmoso eu nunca vou saber, mas como eu sonho com ele. E por que tamanho fascínio? Porque o bar do Ari era frequentado pelo poeta Mario Quintana.
Certa vez, Mario estava por lá, na dele. Eram os anos 1960, e um colega jornalista começou a despejar seu saudosismo:
– Vocês vejam, não é? Antigamente, se o sujeito queria dançar, só tinha o cabaré ou o baile do clube. Agora não, temos essas boates, onde o cara pode ir com a amante, ou com a mulher. Pode até levar a mãe se quiser, e tudo bem!
Mario, que ouvia quieto, emendou de prima:
– O Édipo levaria todas no mesmo dia. A mulher, a amante e a mãe…
Lembrei do genial poeta ao ler sobre o congresso Madrid Fusión, realizado na capital da Espanha entre 27 e 29 de janeiro. O cozinheiro-colunista Marcos Nogueira, da “Folha de São Paulo”, por lá e esteve e contou sobre o melhor debate que presenciou, numa programação paralela do dia 28.
O tema: a função terapêutica dos bares.
Conta aí, Marcos: “Sim: o boteco como uma espécie de anjo da guarda da comunidade, um espaço que protege contra a solidão. A primeira fala da mesa-redonda veio da enfermeira Anna Ramirez, de um projeto destinado a tratar pacientes psiquiátricos com idas a restaurantes e bares. Alguns deles preferem tomar uma bebida a tomar remédios, ela conta.”
Por isso a frase “Hoje estou doidinho por um chope!” faz tanto sentido, viram? Mas sério, o bate-papo foi profundo e instrutivo. Um antropólogo convidado, Sergio Gil, brilhou ao destacar como o bar, especialmente em áreas remotas, serve como consultório sentimental, escritório, ponto de referência, correio, mercearia, classificados, e até restaurante. O bar é a melhor rede social desses lugarejos, como notou Marcos Nogueira. Com uma grande diferença para as igrejas: no botequim, conversa-se melhor, sem perturbar a missa.
Sergio, o antropólogo, foi na mosca: “Quando fecha o bar de um vilarejo, não sobra mais nada que o defina como comunidade.”
Um local de tamanha importância, portanto, deve ser frequentado com certo respeito. E sem servir de desculpas para perder a linha:
– O que é isso, Aníbal? Rastejando de novo? Você não ia à terapia?
– Sim, depois fui a uma palestra, ao escritório e ao correio. Me dá uma ajuda, meu bem, preciso de um banho.
– Amanhã a gente conversa. E sai do armário que o chuveiro é do outro lado.
O próprio Mario Quintana, versejador requintado, lutou para manter o equilíbrio. Quando ainda trabalhava na farmácia do pai, nos anos 1930, passou a exagerar nas doses. “Eu não bebia. Tomei apenas um porre, que durou 25 anos.” Após se internar e tratar o alcoolismo no meio dos anos 1950, nunca mais bebeu. Mas prosseguiu nos bares, atrás do cafezinho, dos bons pastéis e dos amigos.
Nos tempos dos imensos porres, o doce poeta ficava amargo. Certa madrugada, seus cupinchas Waldeny Elias e Gastão Hofstaetter o deixaram na porta da pensão onde vivia. Ao ser recebido aos latidos pelos cães da vizinhança, Quintana saiu vociferando tudo quanto é palavrão. A dona da pensão abriu a janela e ralhou:
– Mas o que é isso, seu Mario? O senhor, homem tão culto, poeta reconhecido, dizendo essas barbaridades?
Quintana, como um raio:
– E a senhora, por acaso, sabe os nomes feios que estes cachorros estão me dizendo?
Inspire-se na sabedoria de Mario Quintana. Vá aos bares, e mantenha o equilíbrio. E, quando começar a polemizar com o cachorro, vá mais devagar.