Cria do bairro de Piedade, Arlindo Domingos da Cruz Filho esbanjou no banjo para deixar saudade.
Músico, letrista, malandro à moda antiga e autor de dezenas de sambas-enredos, Arlindinho foi um dos grandes responsáveis por conduzir o pagode lá do fundo dos quintais para a frente dos holofotes e dos palcos iluminados.
Para lidar com os refletores, mantinha sempre à mão sua indefectível toalhinha. Não era suor, é que Arlindo Cruz transpirava harmonias.
Só de sambas gravados, estima-se que foram mais de 700, de acordo com seu amigo e biógrafo, Marcos Salles. Escritos e inéditos, mais de mil. Só perdia para o recordista Paulo César Pinheiro, que contabiliza 2 mil composições. O livro demonstra como Arlindinho saiu das esquinas e mesas de botequins – e até dos coletivos e trens da Central –, sem permitir que os botecos jamais saíssem dele, nem de seu repertório.
A alma boêmia de Arlindo Cruz, que cantou para subir no dia 8 de agosto aos 66 anos, encantou de Ramos a Cascadura, de Madureira a Salvador. Mas nos deixa lições valiosas, além de tanta música e amor.
Com mestre Arlindo e os seus, por exemplo, aprendemos que é normal tomar cerveja de chinelo no bar (“Meu nome é favela”). Mas que, se você já começa a beber no domingo de manhã, ora, melhor ir se deitar no divã (“Beberrão”).
Aprendemos que o doce lugar é aquele onde há luta e suor, e esperança num mundo melhor. Sem esquecer da cerveja pra comemorar.
E o que uma boa birosca deve ter? Caninha da boa? Tem. Sardinha fritinha? Tem. E um bom carteado, sinuca e porrinha, sim, pra gente jogar.
Caso o incauto chegue tarde ao pagode, e acabe a comida, a bebida e até a canja, o que fazer? Calma. No bagaço, é só respirar, recolher as migalhas e fazer delas seu lanche (“Castelo de cera”). Ou acordar cedo para garantir o levedo, e o mais puro leite pra fortificar.
Fortificar, por sinal, era com Arlindo. Nessas 700 canções, o músico – que aprendeu cavaquinho aos 7 anos – sempre fez questão de deixar o público com água na boca. Suas letras listam dezenas de petiscos e iguarias, como angu com rabada, moquecas na hora do almoço, jiló com pimenta e até cachorro-quente (“A carrocinha”). Sem falar no camarão, que é bom não dormir. No clássico “Falange de Erê”, Arlindo e sua turma exageram: é “cocada, paçoca, suspiro, pipoca. Bolo, bala, bola, cuscuz e manjar”. Na avenida em 1989, em samba do Império para o escritor Jorge Amado, o banquete foi farto: “É muita pimenta, dendê e cacau”, além de pitanga jogada no chão, e Tieta a beber e aprontar.
Autor maior das trilhas sonoras do Brewteco e de tantos botequins do Rio, Arlindo há de ser eternamente brindado, nas mesas de boêmios e batuqueiros. Talvez com doses de parati e hortelã, birita de leite em pó e várias misturas exóticas presentes em seus sambas, ruins de ingerir, perfeitas para rimar.
Eu mesmo andava pegando leve esses dias, só na água gasosa. Mas, em tributo ao partideiro, vou tomar uma em sua memória. Afinal, é como nos ensina o samba:
“Tem um porém, meu bem / A água tanto bate até que fura…”
Vá em paz, Arlindo Cruz.